Repensando os vínculos afetivos, as responsabilidades parentais, a autonomia privada e a dignidade da pessoa humana no contexto da reforma do código civil.

Por Verana Hora, advogada do escritório Muhana e Dias Advocacia, especialista em Direito das Famílias – OAB 29702

A proposta de atualização do Código Civil Brasileiro (Projeto de Lei nº 4, de 2025) traz mudanças profundas no tratamento dos vínculos afetivos e das responsabilidades parentais. Assim como a restauração de um edifício antigo, a reforma preserva a estrutura essencial do Código, mas adapta seus contornos à realidade contemporânea, reconhecendo novas formas de convivência e promovendo maior proteção às relações familiares. Entre as alterações, destacam-se: a possibilidade de realização do divórcio extrajudicial unilateral, a ampliação das responsabilidades pós-divórcio e o fim da obrigatoriedade do regime da separação de bens para maiores de 70 anos.

No que se refere ao divórcio, atualmente a Lei nº 11.441/2007 e o Provimento nº 100/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) exigem consenso entre as partes para a realização extrajudicial. Essa exigência, na prática, leva pessoas que desejam encerrar o vínculo conjugal sem acordo a recorrer ao Judiciário, em processos muitas vezes longos e desgastantes. O Projeto de Lei nº 4/2025 propõe permitir que um dos cônjuges, mesmo sem o consentimento do outro, possa requerer o divórcio em cartório, desde que não haja filhos menores ou incapazes. Essa alteração reafirma a autonomia pessoal e evita que o casamento se transforme em um espaço de coerção, ao condicionar a liberdade de um indivíduo à vontade do outro. Trata-se de medida alinhada à interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. Na ADI 4277/DF e na ADPF 132/RJ (BRASIL, STF, 2011), o Tribunal já reconhecia que o direito ao fim do vínculo conjugal é uma prerrogativa personalíssima, não podendo ser restringido por formalidades excessivas.

Outro avanço previsto é a ampliação das obrigações dos ex-cônjuges após o divórcio, abrangendo não apenas os filhos e dependentes diretos, mas também outros vínculos afetivos que compõem a realidade familiar contemporânea, inclusive animais de estimação. A proposta rompe com a visão tradicional que priorizava exclusivamente relações biológicas ou conjugais, reconhecendo a diversidade de arranjos afetivos como parte integrante da vida familiar. Essa ampliação dialoga com decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que têm reconhecido a importância de proteger vínculos socioafetivos. No REsp 1.404.656/RS (BRASIL, STJ, 2014), por exemplo, a Corte consolidou o entendimento de que a filiação socioafetiva gera os mesmos efeitos jurídicos da biológica, reforçando que o afeto é um vetor de interpretação do Direito de Família.

Ao inserir esse entendimento à legislação, o PL 4/2025 contribui para a adequação do Direito à realidade das novas configurações familiares, aproximando-se da noção de “família multiespécie”. Assim, a proposta revela um amadurecimento institucional no tratamento das relações pós-conjugais.

Nesta linha, ao reconhecer os animais como membros afetivos do lar, por exemplo, o Direito responde às mudanças culturais e afirma o cuidado interdependente como um valor jurídico relevante na dissolução conjugal.

Mais um ponto de fundamental progresso destacado na proposta de reforma é a revogação do art. 1.641, II, do Código Civil, que impunha o regime obrigatório de separação de bens para maiores de 70 anos.

Essa alteração alinha-se ao entendimento firmado pelo STF, no Recurso Extraordinário 1.167.478/MG (Tema 1.236), no qual se declarou inconstitucional a imposição compulsória do regime, por violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada.

A mudança, portanto, representa uma correção histórica. Presumir incapacidade patrimonial com base na idade é manifestação de etarismo jurídico. O amor maduro é tão legítimo quanto qualquer outro e, portanto, deve gozar das mesmas garantias de liberdade de escolha e planejamento de vida.

Ao incorporar essa premissa, a proposta legislativa fortalece a segurança jurídica e reforça o respeito à autodeterminação, especialmente em tempos de longevidade e pluralidade nas formas de amar e conviver.